23 de jan. de 2017

A lua e eu

Meu corpo sob o atlântico
E diante de pupilas exaltadas
a África

Um satélite à espreita,
laranja, despontando no deserto,
me queima pela janelinha do avião.

Será um reflexo dele no mar português?
Minha lágrima salgada também cai nessa água.
Abismo e espelho desse céu
tombado aos meus pés.

Vejo sinal de esperança.
Indicação da trilha.

Rito de passagem
para essa jornada de busca
a que me lanço agora.

19 de jan. de 2017

Reticências

Reticências – Manu Campos

Ela sentia que precisava se jogar dentro do seu próprio ser, mais profundamente. Fazer brotar sua essência mais real, com mais intensidade. Se assim não fizesse, o amor não despertaria.  Os sentimentos, as vontades, as verdades lhe levavam até a beira do abismo, mas não dava o passo à frente para o voo, para o eco de sua expressão genuína.  E ela intuía, silenciosamente, que por isso ele se foi, sem ela.

Um furacão passou pelas pernas, a levantou para o alto e evaporou, deixando-a cair bruscamente no chão. Agora está ali, caída, perdida em um vazio de ser. Tentando se arrastar para se levantar. Mas teme sair fora do seu próprio eixo, fora de seu próprio ritmo. Pois sabe que se assim fizer, tudo que se passou naqueles últimos dias será perdido e ela entrará novamente em um ciclo que não é seu. Em um ciclo alheio ao seu desejo e ao seu movimentar autêntico. 

Tem que subir. Ouve um chamado, tem uma continuação lhe esperando. 

Cada gesto de uma vez, suavemente. Como cada palavra agora no papel. Uma de cada vez. Deixando a ir, subir, sentir como o corpo conduz de dentro o gesto e o gesto o ritmo e o ritmo o enredo, que se volta para o centro e novamente impulsiona o gesto.

Os pensamentos viram partes do corpo, incorporados ao movimento que se forma. Observa as memórias e como elas afetam cada músculo produzindo cada mínimo suspiro.

E assim se lembra da sua blusa, e nela a palavra amor. Talvez tenha sido a primeira coisa que tenha visto nele. Foi o que lhe chamou para perto? O que lhe deu coragem da aproximação? Ele ali, saindo do prédio da antiga fábrica, no fim de um encontro urgente por um mundo melhor. Ele e sua mochila, sua pochete de couro argentina, um cabelo de estrangeiro e uma afirmação sobre o peito; amor, si!. Aquilo a moveu no primeiro dia e embalou a história pra frente.

E agora ali caída no chão sem conseguir se levantar do tombo que recebera, sente que como uma jiboia presa a uma árvore o corpo começa  a se contorcer para iniciar a nova caminhada. A lembrança desata um nó. Primeiro passo da dança...

(Mas vem cá,  porque afinal escrever essas história. Falar de amor!? Pra quê, estamos em plena fase de um novo feminismo, e eu querendo falar sobre isso? Rilke não recomendaria a uma jovem poeta... Melhor falar sobre o sol do verão carioca de 40o que está entrando pela janela, batendo nos arbustos que tentam me separar dos vizinhos mais pobres, mais alegres e mais unidos que eu. Minha foto de adolescente boba rindo sem graça na praça. Ou o processo controvertido de retirada da presidente que a TV muda não me deixa esquecer.  Ou quem sabe sobre o pedaço do bolo que como há mais de vinte minutos em jejum, porque estou ansiosa, nervosa, estranha e não consigo me concentrar em nada. A cabeça me corrói, vontade de não ir para lugar algum, de ser outra, de estar em outro lugar, fugir por ai sem lenço, sem identidade e sem temor. Falta de ar. Tenho que fazer uma mala, tenho que ir para São Paulo, tenho que escrever para o diretor, me chamam, tenho que ir! Quem disse que quero? O que eu quero mesmo é escrever sobre a blusa dele e sobre a palavra amor impressa nela.)

Entrou em casa com as sacolas cheia. A feira rendeu a semana e além dela. Estava alegre, esperançosa, sentia que agora ia. Subvertendo todos os indício, acreditava. Deliciosa ilusão. Botava fé na parceira, em todas as estradas que pegariam, nas músicas que escreveriam juntos, nas filosofias nas quais se perderiam, gastando horas e horas olhando um para o outro, tentando penetrar a alma alheia. Em todos os beijos, os sussurros e os arrepios das peles se fundindo num prazer simultâneo.

Mas ao abrir a porta, um gesto dele fez a sacola escorregar de suas mãos abismadas. De costas, sem blusa, em frente ao computador, não se virou para vê-la chegar. Levantou o braço e acima da cabeça fez como se acenasse para alguém longe, mas parecendo que dizia; - não venha, estou ocupado demais! Flechada no peito. A garganta travou. De relance já entendia do que se tratava. Entrou na cozinha para se recompor, largou as sacolas e desmoronou por dentro.

Volta a sala mascarada, se aproxima mais e vê: ele vai embora, passagens para comprar. Sem lhe dizer nada, sem pensar em depois, sem nada. Se vai! Já era o esperado, não havia surpresas, quebras, vacilos, havia o que havia no início, o finito. Mas seu lado sonhadora prevalecia e ela embarcou na miragem da virada, do inusitado, da ousadia. Não era o felizes pra sempre que queria, - não mesmo -, isso também assustava sua natureza libertária. O que queria era o agora estendido e sem fim à vista. Isso que ela queria; um próximo capítulo e, quem sabe, um romance inteiro.

Dai veio a lágrima embaçando os óculos no museu, veio a DR equivocada, veio a cachoeira tentando reverter na alquimia. Também veio o mirante com a lua cheia, a ventania balançando a cabeça e os corpos que se davam prazer. Mas não veio mais o êxtase sincronizado, a sintonia fina de antes, o olhar mais intenso, a espontaneidade da leitura da poesia falada. E veio a percepção que aquilo tudo tinha sido mais dela.

Buscou razões, explicações e convenceu-se de que faltava, sim, a sua ação, o seu trabalho, a sua expressão. Havia um silêncio, um medo e um colocar o outro acima de si. Viu em segundos que buscava adquirir, ao estar com o outro, algo que ainda não tinha exposto pro mundo, mas tinha por dentro, escondido na gaveta. Estava, como tantas, amarrada ao  sonho romântico que aprendeu brincando de boneca, casa de boneca, sendo criada para o outro, para ser passageiro da própria história. Coisas que mulher ainda trás do berço.

Respira mais livre, o chão já não suga tanto, os gestos internos já estão mais fáceis. Lateralmente no piso gelado, ainda deitada, a mão segura a cabeça. Olha pra janela e vê a sombra da samambaia estampada na cortina e volta a atenção  aos pensamentos que seguem mais tranquilos. Relembra sem medo.

Ele foi embora num dia de calor intenso por dentro e por fora. Três da tarde, um dia como outro, só que não, nele tudo urgia. Mas houve tempo pro beijo mais quente na frente do aeroporto, pras pernas tremerem, o sorriso se alargar e o olho marejar. Houve tempo para as palavras de carinho, liberdade e quem sabe nos encontramos numa nova encruzilhada do caminho, afinal acreditamos no amor livre. Houve um aceno de frente e um sorriso de que aquilo tinha mesmo que ser feito.

E ele foi, parecendo leve; e ela ficou, internamente firme.  Mas saiu ouvindo Elza. Era uma mulher do fim do mundo e até o fim cantaria! Mas sua voz ainda estava rouca, ainda não saia com a potência de dentro.

Foi seguindo. O roteiro da vida conduzia. De lá tinha uma reunião para pisar no chão novamente.

Sentada no café, se viu diante de uma parceira de luta, de amores, de dores, de expectativas, de vontade de crescer e de gritar bem alto tudo que carrega no peito. E ali, naquele encontro - que definiria seu futuro - foi apresentada a Nora, à porta batida de Nora. A transgressão de Nora.  

Ouviu durante uma hora a história de uma mulher, uma personagem, um ícone feminista que em outro século revoltou-se contra os padrões e partiu para seguir seu caminho independente do outro. Ao fim, estava empoderada, impregnada da paixão que pulsa da luta de ser mulher, querer amar e ser viva livremente, criando seu próprio caminho. Saindo de lá, correu atrás do romance de Ibsen, para conhecer sua musa Nora mais de perto. Devorou a peça ainda na rua. Olhou em volta e se perguntou como e onde estava sua porta a bater. A resposta não veio imediata, mas já se encontrava nela.

E, então, no dia seguinte, aquele ser derrubado no chão encontra seu caminho. O movimento do corpo retorna ao eixo. A história revivida na mente, a liberta. A jibóia se move para fora de sua própria armadilha. Levanta do chão e sai para a vida, de peito aberto e a voz pra fora. Bate a porta!




São Paulo, 19 de dezembro de 2015